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Membros da família, jantar e a nossa esquizofrenia moral de cada dia!

Por Vera Cristofani
Publicado originalmente em Veganos Pela Abolição da Escravidão Animal

O termo esquizofrenia moral cunhado pelo professor Gary Francione é por definição “o modo ilusório, enganado, confuso de pensarmos sobre os animais em termos sociais e morais.” Ele diz que “essa confusão pode, é claro, incluir maneiras conflitantes ou incoerentes de olhar para os animais (alguns são membros da família; outros são jantar), mas isso não significa que eu esteja descrevendo uma múltipla ou dupla personalidade clássica.
Nossa esquizofrenia moral, que envolve enganarmos a nós próprios quanto à senciência animal e às semelhanças entre os humanos e os outros animais, e uma enorme confusão quanto ao status moral dos não-humanos, é um fenômeno bastante complicado e tem muitos aspectos.” Francione reflete que se por um lado concordamos que é moralmente errado impor sofrimento desnecessário aos animais, por outro, a esmagadora quantidade de sofrimento que nós impomos a eles, não pode ser considerada necessária em nenhum sentido significativo da palavra.
Uma discussão sobre a disparidade entre o que nós dizemos sobre os animais e como nós, na realidade, os tratamos foi iniciada na quinta reunião do Grupo de Estudos da Teoria Abolicionista do Professor Gary Francione. O tema da esquizofrenia moral é dividido em três partes: diagnóstico, motivos e cura. Na parte do diagnóstico foi abordado o status dos animais antes do século XIX, e como esse status supostamente mudou com a aceitação moral e legal do princípio do tratamento humanitário, isto é, a noção que nós temos obrigação moral em não impor sofrimento desnecessário aos animais.
Antes do século XIX
Antes do século XIX, a cultura ocidental não reconhecia, como uma questão geral, que os humanos tinham qualquer obrigação moral em relação aos animais. Os animais não tinham nenhuma importância e estavam completamente fora da comunidade moral. Poderia haver obrigação moral em relação aos animais, mas estas obrigações eram em relação aos humanos e, de forma alguma, em relação aos animais que eram considerados “coisas”, sem habilidade de pensar ou sentir. Um exemplo desse pensamento vem do filósofo René Descartes (1596-1650), considerado o fundador da filosofia moderna, que afirmava que os animais não são conscientes, porque não possuem alma, a qual Deus as colocou apenas em humanos.
Descartes reconhecia que os animais agiam de uma forma que parecia ser inteligente e com propósito e pareciam estar conscientes, mas eles não eram diferentes de máquinas feitas por Deus. Ele se referia a eles como “autômatos ou máquinas que se movem.” Descartes aceitava que animais não são sencientes, conscientes de dor, prazer, ou qualquer outra coisa. Fazia experimentos. Descartes não levava em consideração as reações dos animais. Ele achava que os animais não eram diferentes de uma máquina que estava funcionando de forma imprópria; para ele um cão gritando não é diferente de uma máquina rangendo que precisa de óleo. Descartes achava que obrigação moral aos animais era o mesmo que obrigações morais aos relógios. Essa obrigação moral ao relógio é direcionada aos outros humanos; similarmente podemos ter obrigação moral ao cão de alguém, mas essa obrigação é em relação ao dono e não ao cão.
Outro filósofo descrito no livro de Francione é Immanuel Kant (1724-1804). Kant não tinha as mesmas visões que Descartes, mas ainda negava que temos quaisquer obrigações morais em relação aos animais. Kant reconhecia que os animais são sencientes e podem sofrer, mas porque não são autoconscientes, nem racionais, eles são instrumentos do homem, para o nosso uso, sem valor em si mesmos. Kant achava que quem era cruel com os animais, tornava-se cruel também nas relações humanas. Kant dizia que os animais existiam meramente como um meio para um fim. Esse fim é o homem.
A lei
A visão que não temos obrigações morais em relação aos animais também era refletida na lei. Antes do século XIX, a lei não reconhecia nenhuma obrigação legal aos animais. Se havia qualquer proteção aos animais, a lei era formulada somente em termos da preocupação com humanos, relacionada, primariamente, aos interesses de propriedade.
Francione lança mão de um personagem chamado Simon, o sadista, para ilustrar essa situação. Simon propõe torturar um cão, queimando-o com um maçarico, pois ele tem prazer em fazer isso. Essa proposta de Simon gera alguma preocupação moral? Simon está violando qualquer obrigação moral em usar o animal para sua diversão? Ou a ação de Simon não é moralmente diferente do que quebrar uma noz e comê-la? Acho que qualquer um de nós não hesitaria em dizer que incendiar o cão para diversão, não é um ato moralmente justificável sob qualquer circunstância. Qual é a base do nosso julgamento moral? É meramente porque estamos preocupados com os efeitos da ação de Simon em outros humanos? Somos contra porque a ação de Simon pode aborrecer pessoas que gostam de cães? Somos contra porque fazendo isso, Simon pode tornar-se mais impiedoso nas suas relações com os humanos? Nós podemos ser contra porque nos preocupamos que a ação de Simon tenha efeitos nas suas relações com outros humanos, mas essa não é a razão principal. Na realidade, condenaríamos esse ato de Simon mesmo que ele fizesse isso em segredo. E se o cão fosse da Jane? Seríamos contra porque Simon está prejudicando uma propriedade da Jane? Também podemos ser contra a ação de Simon, porque o cão pertence à Jane, mas de novo esse não é o motivo principal. Nós acharíamos as ações de Simon objetáveis mesmo que o cão estivesse perdido na rua.
A principal razão pela qual as ações de Simon são objetáveis é em relação ao efeito direto que ela tem no cão. O cão é senciente; como nós, o cão é um tipo de ser que é consciente da dor e tem interesse em não ser queimado. Nós temos uma obrigação –direta com o cão e não aquela que se preocupa com o cão- de não torturá-lo. O único motivo dessa obrigação é que o cão é senciente, nenhuma outra característica, tal como racionalidade, autoconsciência ou habilidade de se comunicar em uma língua são necessárias. Simplesmente porque o cão pode sentir dor e sofrer, nós consideramos moralmente necessário justificar o mal que causamos ao cão. Podemos discordar sobre se uma determinada justificativa é suficiente, mas todos nós concordamos que alguma justificativa é necessária e o prazer de Simon não pode constituir tal justificativa. Uma parte integral do nosso pensamento moral é a idéia que o fato de uma ação causar dor conta como um motivo contra a ação- não meramente porque prejudicar outro ser de alguma forma nos deprecia, mas porque prejudicar outro ser senciente é, por si só, errado. E não importa se o Simon propõe queimar por prazer o cão ou outro animal, como uma vaca por exemplo. Nós objetamos a conduta dele de qualquer forma.
Em resumo, muitos de nós rejeitamos a caracterização dos animais como “coisas” que dominou o pensamento ocidental por muitos séculos.
O princípio do tratamento humanitário
As teorias do tratamento humanitário tiveram início com o advogado inglês Jeremy Bentham (1748-1832). Bentham argumentava que apesar de haver diferenças entre humanos e animais, há uma importante similaridade: ambos podem sofrer e a capacidade de sofrer é tudo que é necessário para ter importância moral e para humanos terem obrigações morais em relação a eles. Uma frase de Bentham que ficou famosa é: “A questão não é "eles podem raciocinar?" nem tampouco "eles podem falar?", mas sim "eles podem sofrer?" O princípio de Bentham representou nada mais que uma revolução no nosso pensamento moral sobre os animais no sentido que rejeitou visões como as de Descartes e Kant.
Bentham argumentava que nosso dever de não impor sofrimento desnecessário aos animais era uma obrigação moral direta a eles e era baseada somente na senciência. Isto marcou uma nítida partida de uma tradição cultural que nunca havia considerado os animais como nada além do que “coisas”, destituídos de interesses moralmente significativos.
Quem é senciente?
De acordo com o professor Francione, nem todos os animais provavelmente são sencientes. Talvez seja difícil traçar uma linha separando aqueles que são capazes de experimentar dor e sofrimento conscientemente, daqueles que não são. Sem dúvida a maioria dos animais que exploramos são sencientes. Primatas, bois, porcos, roedores são sencientes capazes de experiências mentais subjetivas. Todos os seres sencientes, apesar de qualquer diferença, são similares uns aos outros e diferentes de tudo mais no mundo que não é senciente.
A observação de que animais são sencientes é diferente de dizer que eles estão vivos. Ser senciente significa ser um tipo de ser que é consciente de dor e prazer; há um “eu” que tem experiências subjetivas. Nem tudo que está vivo é, necessariamente, senciente. Francione diz que “até onde sei, plantas estão vivas, mas não sentem dor, não agem de forma que indicam que sentem dor; não possuem estruturas neurológicas e fisiológicas que nós associamos em animais humanos e não-humanos. Dor em humanos e não-humanos serve como uma função prática, evita destruição e morte, é sobrevivência.” Plantas não podem usar a dor desta forma, como um sinal -- flores não podem sair correndo quando nós as apanhamos -- e assim, é difícil explicar porque as plantas desenvolveriam mecanismos para a senciência, se tais mecanismos são totalmente inúteis.
Princípio do tratamento humanitário na lei
O princípio do tratamento humanitário está tão fincado na nossa cultura moral, que os sistemas de leis dos Estados Unidos e outras nações pretenderam estabelecer o princípio como um padrão legal nas leis do bem-estar animal. Há dois tipos de leis, as leis gerais e as leis específicas. Um exemplo de leis gerais de bem-estar animal, são as leis contra crueldade que supostamente proíbem a crueldade e infligir sofrimento em animais, sem distinção entre os vários usos de animais. Um exemplo é a lei de Nova York que impõe sanção criminal em qualquer pessoa que “sobrecarregar, torturar, ou cruelmente espancar ou machucar sem justificativa, aleijar, mutilar, ou matar qualquer animal.” Na Inglaterra, a lei de Proteção Animal, de 1911, torna uma ofensa criminal “espancar cruelmente, chutar, maltratar, sobrecarregar, torturar, enfurecer ou aterrorizar qualquer animal ou “impor sofrimento desnecessário aos animais.” As leis específicas de bem-estar animal pretendem aplicar o princípio do tratamento humanitário em um uso de animal em particular. Exemplos: British Animals Act (Procedimentos Científicos) de 1986, é sobre o tratamento de animais usados em experimentos. The American Humane Slaughter Act, originalmente promulgado em 1958, regula o abate de animais usados na alimentação.
As leis do bem-estar animal emergiram no séc. XIX como uma aplicação direta do princípio do tratamento humanitário. Antes se Simon prejudicava o boi da Jane, a lei requeria que fosse mostrado que Simon foi maldoso com a Jane e como os tribunais não tinham nenhuma preocupação com os animais , isso era apenas limitado no sentido de que se a crueldade tinha efeito na sensibilidade do público ou na tendência da crueldade aos animais se estender aos humanos. As leis anticrueldade permitem processar Simon mesmo se ele não tivesse sido maldoso com a Jane, mas tivesse sido maldoso apenas com o seu boi. Em resumo, os estatutos posteriores ao século XIX, tinham intenção “de proteger as bestas como propriedade ao invés de criaturas suscetíveis ao sofrimento.” Enquanto que os estatutos anticrueldade foram “designados para proteção animal.”
Fonte: Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? by Gary L. Francione (pages 1 to 9)

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